A Escola-fazenda de Canuanã é tão imensa quanto a paisagem local. Localizada no interior do Tocantins, em Formoso do Araguaia, ela é uma escola rural que funciona em regime de internato. Tem aproximadamente 1.200 crianças e é mantida pela Fundação Bradesco há quase 40 anos.
A convite da fundação, a Rosenbaum recebeu o desafio de redesenhar as moradas dos alunos de 11 a 18 anos. Para este projeto, trouxemos todas as premissas que acompanham o desenvolvimento da metodologia do A Gente Transforma.
O projeto de arquitetura se tornou então uma oportunidade de construir uma prática transversal e inclusiva, que passou pelas questões da ancestralidade e território, espaço público e espaço privado, tratando de construir lugares, entendendo como o espaço e as origens proporcionam a criação de laços afetivos, identidade e pertencimento. Para o trabalho convidamos o jovem escritório de arquitetura Aleph Zero a fim de compor conosco um time de projeto e desenvolvimento.
Nas novas moradas vivem hoje 540 crianças e adolescentes, filhos de assentados, caboclos e indígenas que moram na zona rural do centro-norte brasileiro.
“A proximidade da realidade sociocultural, diversa daquela comum ao pesquisador, exige laços e olhares que partem de outro lugar, de dentro do contexto em estudo, para estabelecer proximidade com as vozes do lugar, de perto e de dentro.”
José Guilherme Magnani – antropólogo/etnógrafo
Arquitetura e design são ferramentas de transformação social, que nascem do encontro da natureza com a mão do homem. Ambos dependem de outros fatores. Esse conceito torna o exercício de projeto uma prática transversal, interligando antropologia e geografia, arte e política, com a crença de que o desenho pode dar autonomia se pensado além do ponto de vista funcional da arquitetura, dentro do contexto social.
O Instituto A Gente Transforma empregou neste projeto sua tecnologia social, que auxilia na reconquista da autoestima das comunidades por meio de ações que retomam saberes ancestrais e trazem benefícios concretos para o indivíduo e suas comunidades: visão de futuro, prosperidade. Passo ambicioso que impacta toda a sociedade, a partir da visão integrada de saberes de ontem e hoje.
O projeto foi concebido numa sequência de imersões, que criaram uma ampla visão do contexto, para depois desenvolver uma estratégia de projeto.
A primeira imersão foi a focada na aproximação com os alunos, moradores da escola. Nesse diálogo, foi possível entender que as crianças não reconheciam a escola como sua casa, apesar de morarem lá por 13 anos. Esse foi o fio condutor de todas as etapas seguintes.
Em seguida, partimos para o reconhecimento do entorno e das raízes ancestrais das crianças, um olhar para referências e bagagens trazidas com eles em forma de afeto, a lembrança do conforto e tecnologias empíricas empregadas nas construções das casas dos pais e avós, revertendo o olhar de aparente escassez para um universo de abundância. Foi uma incursão na cultura cabocla e indígena local Javaé, povos que guardam saberes valiosos a partir de sua integração com a natureza exuberante, as temperaturas e chuvas extremas, para criar no projeto um diálogo entre o espaço, a memória e a imaginação.
Criamos então, junto com os alunos e professores, o Festival Cultural Canuanã é Minha Casa, que levou para a escola pela primeira vez apresentações culturais dos pais e familiares dos alunos, promovendo a integração dos saberes e fazeres locais com o lugar do ensino, expandindo o conceito de cultura no meio das crianças e educadores.
O festival abriu a semana de desenho coletivo, que teve escuta, propostas e suposições da equipe de projeto com os alunos, com o papel em branco. Tratamos de questões relacionadas ao espaço que os corpos ocupam. Lidamos com a importante questão do espaço público e privado dentro das moradas.
Essa atividade incluiu as crianças moradoras dos antigos alojamentos que agrupavam 40 pessoas, e resultou na planta das moradas na forma como elas estão configuradas hoje. Partimos do microespaço, definindo com os estudantes o numero de pessoas por quarto, o distanciamento entre as camas e a distribuição de quartos em conjunto, o que configurou a planta com pátios. O projeto nasceu como consequência das necessidades e do protagonismo dado às crianças, com suas vozes criativas.
A partir desse dia, a equipe de arquitetura desenvolveu e agregou conhecimento e tecnologia para transformar o aprendizado com as crianças em dois edifícios.
“Para emancipar alguém, é preciso ser-se emancipado. É preciso conhecer-se a si mesmo como viajante do espírito, parecido com todos os outros viajantes, como sujeito intelectual participante da potência comum dos seres intelectuais.”
Jacques Rancière – filósofo