Projeto de cociração das casas Yawanawá feito em parceria com a comunidade | Rosenbaum + Paulo Alves + Marcelo Pereira dos Santos + Anderson Amaro Lopes de Almeida + Marlucia Candida | Texto Felipe Milanez | Apoio Governo do Estado do Acre
Texto de Felipe Milanez – Pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Felipe Milanez escreve sobre meio ambiente, conflitos sociais e questões indígenas. É também pesquisador visitante na Universidade de Manchester e integra o European Network of Political Ecology (Entitle)
A própria identidade indígena é a principal ferramenta. E o povo Yawanawá, ao longo de um século de contato próximo com a sociedade do entorno, muitas vezes traumático, aprendeu como caminhar nesse percurso tortuoso olhando para a frente. Conforme lembra o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, índio não é um conceito que remete apenas, ou mesmo principalmente, ao passado – é-se índio porque se foi índio –, mas também um conceito que remete ao futuro – é possível voltar a ser índio, é possível tornar-se índio. Para ele, “A indianidade é um projeto de futuro, não uma memória do passado”.
Biraci Brasil Nixiwaka, liderança Yawanawá, conta que, quando primeiro foi para a cidade, em 1980, foi para tentar uma vida melhor do a que tinha quando vivia na aldeia, dominada por patrões seringalistas e missionários evangélicos. A vida na aldeia era traumática, e mesmo sem reconhecer a situação de escravidão que estava submetido – o que ele viria a perceber após – sabia e sentia o sofrimento na pele. Ser índio era um estorvo, eram chamados de “caboco” e tratados com imenso preconceito.
“Lá na cidade eu vi que nosso povo estava não apenas perdendo a língua, mas perdendo o nosso espírito. Nossa conexão espiritual com nós mesmos, com a natureza, com o nosso mundo, com os nossos ancestrais”, disse Nixiwaka em entrevista na aldeia.
O jovem líder, que havia partido junto de seu primo, Salles, filho de Raimundo Luis, o então cacique, decidiu, então, retornar. Voltar para a aldeia, voltar a ser yawanawa, voltar a, principalmente, ter controle social de seus destinos. “Eu voltei para a aldeia para poder fazer uma discussão ampla, para alcançarmos o resgate espiritual e cultural”.
O povo Yawanawa conseguiu libertar-se da dominação dos seringais, da dominação religiosa imposta pela missão norte-americana New Tribes Mission, conquistou direitos e seu território tradicional. E a principal arma foi a poderosa identidade política, a indianidade, a vontade de ser Yawanawá.
O povo Yawanawá hoje, nas palavras de suas lideranças, vive um “novo período”, uma “nova era”, que eles chamam de “a era do amor”. Eles percebem uma nova relação com o mundo do entorno, sem a agressividade de tempos passados, mas com interação e reciprocidade, diálogo e convivência. Sabem que os desafios são grandes, as pressões econômicas cada vez maiores, as seduções de consumo cultural estão presentes por todas as partes. Mas sabem que, no futuro, serão indígenas, não deixarão de ser Yawanawa.
No processo que Nixiwaka chama de “resgate”, que pode ser interpretado como uma nova transformação, com ressignificação de valores e reinserção de valores culturais em sua vida cotidiana, o espaço foi sempre um ponto fundamental. O território, o rio, a mata. E a aldeia. O local de vivência e convivência, o espaço de encontro e celebração. Nixiawaka, após longos períodos de ausência e viagens na defesa e luta pelos diretos, fundou com outras lideranças a aldeia “Nova Esperança”. Mais uma vez, uma sinalização para o futuro.
É possível também analisar que não há uma “reconquista”, no sentido de imaginar que nada chegou a ser perdido. Por um período, os Yawanawa viveram sob dominação e escravidão. Hoje, livres e autônomos, querem escolher seu modo de vida e o futuro das próximas gerações. Esse modo de vida envolve elementos que estão presentes no universo Yawanawa. Elementos que constituem sua cosmovisão, mitos, a etnohistória, a história de acordo com suas próprias perspectivas. Nesse sentido, a construção de uma aldeia totalmente reformulada, em novos padrões que reverenciam a história mais antiga do povo, é um elemento fundamental para a constituição de uma perspectiva autônoma de futuro.
Quando o velho Yawa descreve como o povo Yawanawa vivia, em meio a ritos xamânicos e histórias e músicas, ele faz uma intepretação literária de uma forma sofisticada, onde os conflitos são expostos, negociados, e um modo de vida é recriado. A interpretação inspira a imaginar uma forma de vida possível, que deve ser alcançada para a plenitude da alteridade Yawanawa. Ser Yawanawa envolve, nessa perspectiva, viver de acordo com uma ética histórica. Essa ética se assenta sobre o território, se constitui e se materializa em um espaço da urbanidade visto como “tradicional”, com um arranjo específico da organização do espaço.
A idealização do projeto Yawanawa é uma conjunção de ideias e saberes que se encaixa na perspectiva desta “Nova Era”, segundo os Yawanawa. Uma era com diferente relacionamento da sociedade com seu entorno, novas alianças estratégicas e complementares.
O projeto é um ideal das lideranças do povo Yawanawa, materializado com ajuda de uma equipe envolvida em um longo processo de aproximação e identificação com o povo Yawanawa.
As discussões, encontros e reuniões são realizadas de maneira a exercitar a vontade de construir um diálogo, no qual há o exercício do protagonismo do povo Yawanawa, não apenas centrado em suas principais lideranças, mas em um amplo sentido comunitário, ocorre de forma plena em busca de autonomia. Os Yawanawa pensam, se preocupam, e tentam descobrir formas de como irão sobreviver no futuro. Quais as perspectivas? Nesse momento, na atual fase, uma reconstrução do espaço é um aspecto fundamental para a perspectiva futura de um novo protagonismo Yawanawa. Uma nova aldeia, com uma nova ética e organização que reconquista um modo de vida cultural, visto como uma tradição.
A aldeia e as casas, no padrão idealizado pelos Yawanawa junto a equipe coordenada po designer Marcelo Rosenbaum, são apenas o primeiro passo no sonho de vida Yawanawa. A construção do espaço é onde se assenta um projeto muito maior, que envolve práticas sociais, culturais e econômicas e que constituem uma perspectiva de futuro para novas gerações Yawanawa.
A opção da autoconstrução para a reconstituicão da aldeia tradicional Yawanawa, além da importância da autonomia se dá também devido aos perigos trazidos por forasteiros. Trabalhadores externos poderiam trazer junto consigo uma série de impactos negativos no cotidiano e na vida da aldeia, inclusive prostituição e alcoolismo, situações já vivenciadas em experiências prévias.
Os próprios Yawanawa, auto organizados, serão auxiliados por 10 arquitetos e construtores. Mas é o protagonismo indígena que será exercitado: os indígenas constroem, e assim, reconstroem seu conhecimento arquitetônico, acumulando saberes e práticas para o futuro. O exercício da construção é parte significativa do projeto.
Os indígenas serão também co-responsáveis pelos materiais necessários. Serão eles a abrir picada na floresta para buscar madeira, acompanhados apenas por um engenheiro florestal cuja intenção é oferecer conhecimento técnico e científico complementar ao tradicional para auxiliar o manejo das palhas da Paxiuba. Esse manejo madeireiro, realizado de forma tradicional pelos Yawanawa, pode vir a ser desenvolvido como subsidio para uma futura autonomia econômica, caso seja de interesse do povo Yawanawa.
O novo espaço da aldeia vai reconstituir áreas comuns que haviam sido perdidas, deixadas de lado nas recentes experiências de transformações culturais, onde o autoritarismo do seringal foi incorporado de forma mais visível que a tradicional vida comunitária, igualitária e solidária.
O projeto promove a união das famílias, com casas aldeias e aldeias casas. Uma iniciativa dos indígenas que perceberam uma transformação cultural de distanciamento uns dos outros, herança dos seringais e da missão evangélica, e que querem agora por fim e incentivar uma forma de relacionamento baseado em suas tradições.
O projeto oferece transformações práticas também, como o resgate do fogão a lenha, com novas tecnologias que eliminam o excesso de fumaça. E o fim do uso do gás, que envolve custos econômicos excessivos, uma logística complexa de reposição e de descarte, produzindo lixo. Ao invés de lixo, o fogão a lenha deixa resíduos orgânicos, promove o trabalho comunitário e auxilia no manejo da flora.
O Projeto Yawanawa é composto por ideias que se convencionou chamar de “sustentáveis”, mas que nada mais são do que a própria reconquista da autonomia do modo de vida. A aldeia será envolta em uma agrofloresta, por exemplo. Em algumas perspectivas científicas, a própria Amazônia, em si, é uma agroflorestal, como já escreveram William Balée, que a chama de “floresta antropogênica”, uma mata cultural, e Michael Heckenberger, com o conceito de “floresta parque”, um parque cultural. Essa forma de agricultura prove alimentos e alimenta a biodiversidade. Diversidade que não deve ser vista apenas como biológica, na realidade, mas como social e culturalmente construída ao longo da história. O uso das tradições Yawanawá oferece possibilidades muito mais sofisticadas do que a “sustentabilidade” apenas como é popularmente conhecida: não é apenas sustentável, em termos culturais e ecológicos. Mas é enriquecedor, no sentido de que as transformações culturais serão mais ricas, autônomas e sofisticas, e a construção da biodiversidade adubada e incrementada.
A autonomia, elemento dessa forma sustentável de vida, também é refletida na menor dependência de elementos e bens externos: a comunidade não vai precisar trazer mais nada de fora, tudo o que precisam estará dentro do seu território, como sempre foi. Novos conhecimentos e práticas serão apenas agregadas, de forma a contribuir ao conhecimento indígena e da maneira como os Yawanawa perceberem serem necessárias, como saneamento, tratamento de água e tecnologias da permacultura, sempre aliadas ao conhecimento tradicional.
A indianidade é um projeto de futuro. E o Projeto Yawanawa é uma constituição para o futuro de um povo.”
Felipe Milanez
Balée, W. 1994. Footprints of the Forest: Ka’aporEthnobotany – the Historical Ecology of Plant Utilization by an Amazonian People. Columbia University Press, New York.
Heckenberger, M.J., Kuikuro, A., Kuikuro, U.T., Russell, J.C., Schmidt, M., Fausto, C.,
Franchetto, B., 2003. Amazonia 1492: pristine forest or cultural parkland?
Science 301, 1710–1714.
Heckenberger, M. J. 2005 The ecology of power: culture, place, and personhood in the Southern Amazon, AD 1000–2000. New York, NY:Routledge.
Viveiros de Castro, E. 2011. A indianidade é um projeto de futuro, não uma memória do passado. Entrevista com Eduardo. Prisma Jurídico, vol. 10, núm. 2, julho-dezembro, 2011, pp. 257-268.Universidade Nove de Julho, SP.
Às margens do rio Gregório, na cidade de Tarauacá, fica a terra indígena dos Yawanawás, o primeiro povo a conseguir reconhecimento do estado do Acre e oficializar seu território no Brasil. Da vontade de manter viva uma cultura, uma história, veio a organização em suas três aldeias, Mutum, Escondido e Nova Esperança. Seus pouco mais de 600 habitantes carregam consigo mais do que o DNA de seus antepassados. Sabem que depende deles a perpetuação de seus saberes e de sua língua materna. É por isso que no coração da floresta, despidos de medo, recebem o homem branco numa grande festa de acolhimento, de abraço, de respeito à vida.
SETUL-AC (Secretaria de Turismo e Lazer do Estado do Acre)
SEHAB (Secretaria de Habitação do Estado do Acre)
Direção e Criação
Marcelo Rosenbaum
Direção Executiva
Adriana Benguela
Arquitetos convidados
/ Paulo Alves
/ Marcelo Pereira dos Santos – Low Construtores
/ Anderson Amaro Lopes de Almeida – arquiteto convidado pela da SEHAB ACRE
/ Marlucia Candida
Argumento
Felipe Milanez
Fotos
Genevieve Bernardoni